08 Abril 2021
“Em fins do século XIX, quando a Igreja parecia condenada a desaparecer, Leão XIII, contra todos os prognósticos, conseguiu reinventá-la com êxito. Francisco assume desafios semelhantes. A história dirá se as mudanças introduzidas são suficientes para relançá-la frente aos grandes desafios das próximas décadas”, escreve Diego Mauro, professor e coordenador do Doutorado em História da Universidade Nacional de Rosário, Argentina, com estudos focados em história do catolicismo e da secularização no mundo contemporâneo.
O artigo é publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Abril/2021. A tradução é do Cepat.
No plano internacional, o papado de Francisco continua gerando intensos debates. Para os setores tradicionalistas da Igreja Católica e algumas das expressões mais radicalizadas das direitas globais trata-se, simplesmente, de um esquerdista, inclusive de um comunista.
Esta afirmação, embora em termos mais moderados, também foi respaldada por diferentes meios de comunicação ligados ao establishment das finanças mundiais, como o The Wall Street Journal e por intelectuais de diferentes posicionamentos ideológicos. Por exemplo, para o filósofo italiano Gianni Vattimo, só o Papa poderia liderar, em nossos dias, uma revolução em um mundo pós-moderno carente de utopias.
No arco do heterogêneo mundo das esquerdas, suas declarações geram diversas reações. Enquanto que para boa parte dos movimentos populares da América Latina – assim como para algumas referências da “nova esquerda” europeia, como é o caso do Podemos na Espanha – as declarações de Francisco são muitas vezes motivo de celebração, as esquerdas tradicionais desconfiam do pontífice e, sobretudo, questionam a suposta radicalidade de seus posicionamentos políticos e ideológicos.
Na Argentina, seu país de origem, este debate se cruza com a discussão mais local sobre a suposta adesão do papa ao peronismo, o que o coloca em um dos lados da famosa “grieta política” e gera uma rejeição entre aqueles que aderem à centro-direita e se colocam em posições antiperonistas. Além disso, as posições da Igreja Católica sobre o aborto – que foi finalmente aprovado na Argentina – provocaram intensos debates entre as esquerdas e os movimentos sociais, mesmo entre aqueles com posições próximas às do Pontífice.
O que há de certo em tudo isto? Francisco é um papa de esquerda ou peronista? O que dizem, concretamente, suas encíclicas? Qual é a radicalidade de sua crítica ao neoliberalismo e ao funcionamento do capitalismo em sua etapa globalizada? O que propõe? Destaca-se em seus documentos e declarações alguma forma de utopia católica renovada? Qual é o projeto de Francisco para o catolicismo das próximas décadas?
O Papa Francisco bebe em ao menos duas tradições de pensamento no interior da Igreja: o catolicismo social que surge na Europa do século XIX e que se desenvolve nas primeiras décadas do XX, e variantes particulares das “teologias da libertação” dos anos 1960 e 1970. Suas posições foram influenciadas pela vertente argentina conhecida como Teologia do Povo, que reivindica a cultura popular e as classes populares como diques de contenção a uma globalização de corte neoliberal.
Em muitos aspectos, estas tradições compartilham um mesmo grande adversário: o liberalismo. Para o pensamento social católico, o liberalismo destrói os vínculos comunitários, corrói os laços sociais e fragiliza os corpos e entidades que, se supõe, devem formar a trama orgânica de uma sociedade “sadia”, composta de pequenas comunidades, municípios, famílias, profissões, grêmios, sindicatos, associações.
O socialismo, o anarquismo e o comunismo, os inimigos mais temíveis da Igreja Católica ao longo do século XX, são o resultado, segundo este marco interpretativo, da dissolução dos vínculos comunitários. Neste sentido, embora a crítica ao liberalismo não tem nada de novo na história da Igreja, o contexto político global no qual Francisco recupera tais ideias é muito diferente.
Enquanto em inícios do século XX, em boa medida, estas formulações buscavam conter o avanço do socialismo e o comunismo, em nossos dias, diante de certas esquerdas revolucionárias com pouca relevância política e um mundo em que as ideais neoliberais ainda são hegemônicas, seus argumentos adquirem politicamente outros sentidos.
Longe de constituir um discurso de ordem em favor do status quo, as ideias social-cristãs são, atualmente, quase o contrário. Uma verdadeira pedra no sapato do establishment global que costuma desqualificá-las apelando à palavra mágica de nosso tempo: populismo.
Na recente encíclica de Francisco, Fratelli Tutti – em continuidade com a Laudato Si’ – ficam evidentes outras influências e algumas propostas que, de certo modo, rompem amarras com o catolicismo social para dar passos em um sentido mais “anticapitalista”. Por um lado, sobressai a relativização da propriedade privada – considerada como um direito natural, mas de segunda ordem – e, portanto, submetido ao bem comum e aos interesses da comunidade.
Embora a ideia em si não seja nova e tenha um longo desenvolvimento na teologia católica, a clareza na forma como este princípio se manifesta na encíclica e mais ainda no contexto atual não pode passar despercebida. Francisco cita São João Crisóstomo, quando destaca que “não fazer os pobres participar dos próprios bens é roubar e tirar-lhes a vida”, e São Gregório Magno, ao dizer que “quando damos aos pobres o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso, mas limitamo-nos a restituir o que lhes pertence”.
Por outro lado, embora se mantenha a ideia de uma harmonia possível e desejável entre trabalhadores e empresário, a encíclica propõe, ao mesmo tempo que, a longo prazo, essa estratégia não é uma solução de fundo. Em várias passagens da Fratelli Tutti, o que se alenta não é mais a conciliação de classes do catolicismo social de outrora, mas, ao contrário, sua progressiva diluição para avançar para novas formas de produzir, trabalhar e conviver. O objetivo último que também abrigava, cabe recordar, a utopia comunista.
Há nessas passagens muito do pensamento de Louis-Joseph Lebret e do movimento “humanismo e economia”, muito influente na talvez a encíclica mais radical do catolicismo contemporâneo: Populorum Progressio, de 1967. Nesta direção, há uma aproximação, mas ao mesmo tempo um afastamento do catolicismo social e de seus derivados, como o paradigma keynesiano e o Estado de Bem-estar.
Nas condições atuais, Francisco não deixa por isso de apoiar taticamente as políticas a favor dos três T (Terra, Teto e Trabalho) e aquelas que animam um capitalismo de rosto “mais humano”. Um novo Green New Deal [novo pacto verde], nos termos da esquerda democrata nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a encíclica traça uma ideia de futuro diferente e insiste em que não é suficiente voltar à economia de consumo e redistribuição dos “anos dourados” do capitalismo.
Ao contrário, há em Francisco uma preocupação em oferecer uma ideia de futuro alternativo, baseado na reconstrução da sociedade e a economia com outras coordenadas em que se ouvem ecos tanto do decrescimento em matéria econômica, como de uma forte reivindicação das lógicas comunitárias e cooperativas no momento de organizar o trabalho.
Desta forma, a encíclica coloca indiretamente em dúvida a necessidade, a médio prazo, de uma classe empresarial e, por conseguinte, da própria existência das relações de dominação capitalistas, em favor de formas autogeridas de trabalho, produção e distribuição.
O apoio papal aos movimentos da economia popular na América Latina vai justamente nessa linha e, além disso, está relacionado à sua preocupação com a problemática ambiental. Diz isso claramente: “O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo meio ambiente”, pois, “quem possui uma parte é apenas para administrar em benefício de todos””.
Não estou certo que isto seja o suficiente para formular uma nova utopia política católica capaz de relançar a diminuída grei em nível global, mas está claro que essa é a aposta de Francisco. Dar forma a um futuro alternativo de base reformista, mas de conteúdo mais radical.
Por tudo isso, o horizonte utópico que Francisco pretende traçar, para além de suas zonas cinzentas, não deixa de fazer barulho político em um momento no qual, como argumenta Alejandro Galliano, só o capitalismo pode sonhar, enquanto as esquerdas parecem ficar presas em retóricas defensivas ou discursos críticos certamente padronizados, ao final, politicamente pouco eficazes.
O pano de fundo destas ideias – comunitarismo, cooperativismo, movimentos sociais, economia popular – por meio das quais Francisco tenta dar forma a uma utopia cristã nas margens do capitalismo é a reivindicação de um fundamento transcendente para as ideias de igualdade e fraternidade. Não passa despercebido que o Papa almeja colocar o catolicismo como uma força capaz de reunir diferentes vozes antineoliberais por todo o mundo.
Não é um dado menor que sua última encíclica se dirija a todos os homens e mulheres de boa vontade e não mais somente aos católicos. Nem a sua aproximação ecumênica às grandes religiões do Livro – como se viu em sua recente visita ao Iraque –, como também a sua progressiva guinada para a Ásia.
Esta é a primeira vez, desde os anos 1930, que as encíclicas não condenam o comunismo. Embora seja possível supor que tal postura está relacionada à sua marginalidade em nossos dias, em várias entrevistas, o próprio Francisco se mostra certamente moderado em suas críticas. Diante da pergunta sobre o seu suposto esquerdismo, costuma destacar que ele não é comunista, mas que, de qualquer modo, são os comunistas que se inspiram nas ideias de fraternidade e igualdade do cristianismo, ainda que com erros. O principal deles é o de ter rejeitado o fundamento religioso da ideia de igualdade para tentar substituí-lo, infrutuosamente, por argumentos científicos e postulados sociológicos.
Neste sentido, Fratelli Tutti pode ser lida como uma história do “fracasso” das esquerdas no século XX e a constatação de que sem uma ideia de Deus – ou de algum ator externo – não há como defender com êxito os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, diante do avanço e a evolução do capitalismo global. Só a “consciência de filhos de Deus”, argumenta Francisco, pode assegurar a fraternidade, porque “a razão, por si só, [...] não consegue fundar a fraternidade”.
Se não se reconhece alguma forma de verdade transcendente, triunfa a força do poder. Por que a igualdade seria um valor em si mesmo e deveria se defender sobre a crescente desigualdade? Por que a liberdade resultaria preferível à opressão ou à escravidão? Se não existe um árbitro externo que estabeleça as regras do jogo e os princípios éticos universais, argumenta o papa, por que razões aqueles que podem e contam com os recursos para fazer isso não subjugariam os outros?
Em uma espécie de inversão do papel desempenhado pela Igreja em inícios do século XX, o Deus que Francisco pretende trazer à cena novamente não é o de outrora, preocupado em deter o comunismo e frear as possíveis revoluções socialistas, mas um Deus que, ao contrário, se apresenta como a última esperança na luta política por igualdade e a fraternidade. Uma luta que, conforme ilustra a parábola do Bom Samaritano – de fato, o centro nevrálgico da encíclica –, não inclui apenas os cristãos, mas grande parte da humanidade.
As ideias de Francisco reconhecem também diversas influências que vão dos desdobramentos da chamada “esquerda humanista” e a filosofia marxista da Escola de Frankfurt às contribuições da esquerda heiddegeriana. Nutrindo-se de todas estas tradições e debates, Fratelli Tutti estabelece uma conexão causal entre a crise das grandes narrativas políticas e religiosas e a reprodução da cultura do consumo e o descarte que, do seu ponto de vista, estrutura as subjetividades neoliberais a ser combatidas.
Diante deste desafio, conforme argumenta a teóloga Emilce Cuda, Francisco aposta em ressuscitar a Teologia do Povo argentina. Dessa vertente, Francisco retoma o conceito de povo para pensar um modelo de sociedade não liberal e propor uma reivindicação da cultura popular – entendida como o resultado sedimentar da história de uma comunidade – como um anticorpo para enfrentar os tentáculos da hegemonia neoliberal. Uma conclusão que compartilha com as chamadas filosofias da libertação e também, até certo ponto, com vertentes pós-marxistas como a teoria da hegemonia de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
Embora seus posicionamentos recebam numerosas críticas e o rótulo pejorativo de “papa populista”, Fratelli Tutti destaca que a noção de povo que defende é aberta e poliédrica, capaz de metabolizar coisas novas, de mudar e de se enriquecer com os “outros”, imigrantes e refugiados. Uma definição distante das formas de essencialismo fechado que seus detratores lhe atribuem e que eram habituais nos nacionalismos católicos que alimentaram diversos integrismos, ao longo do século XX.
A encíclica destaca com clareza: embora “ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados por sua fé a defender diversas formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé com o humanismo que inspira, deve manter vivo um senso crítico perante estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se”.
O catolicismo está muito longe de ser uma instituição homogênea e disciplinada. Trata-se, ao contrário, de uma constelação de atores diversos, atravessados por ideologias, tendências teológicas, espiritualidades e concepções sociais e políticas diversas. Vemos isso o tempo todo. É, em definitivo, um campo onde seus participantes lutam e dirimem cotidianamente a definição das fronteiras e os conteúdos do próprio catolicismo. O Papa atua nestas condições e está muito longe de ter todas as cartas. Pode ser que nem sequer tenha as melhores.
É verdade que a Igreja contemporânea, diferente da medieval ou a colonial, constitui uma instituição muito mais centralizada e com uma certa capacidade de controle no marco do qual o Papa pode acionar numerosos instrumentos. Isto se vê, por exemplo, na nomeação de cardeais que, por sua vez, serão determinantes no próximo conclave, quando Francisco morrer ou renunciar.
Mas isto não deve nos fazer perder de vista ao menos duas coisas: primeiro, que sua autoridade não deixa de ser questionada ou, o que é mais frequente, desobedecida sem maiores consequências; segundo, que o papado é a cabeça da Igreja, mas também, ao mesmo tempo, apenas um mais dos atores que disputam espaços e poder no mundo católico. Um ator importantíssimo, não há dúvidas disso, mas não necessariamente o mais importante, nem sequer em questões dogmáticas. Desde já, incapaz de impor sua vontade a esse universo infinito de grupos, congregações, associações, universidades e ONGs que fazem parte das estruturas institucionais da Igreja ou que se reconhecem católicas.
As enormes dificuldades que encontrou para reformar a cúria romana ou sanear o IOR – o banco vaticano – mostram que os setores tradicionalistas – e diferentes grupos de poder – gozam de posições sólidas e dificilmente alteráveis. Por outro lado, as resistências virulentas em mudanças até mesmo moderadas, como a possibilidade de ordenar sacerdotes homens casados para suprir a falta de padres em determinadas regiões ou, recentemente, a oposição a que os sacerdotes abençoem as uniões civis de casais do mesmo sexo, demonstra que a aposta de Francisco em difundir seu horizonte utópico precisa vencer resistências de todas as ordens que tornem certamente incerto seu futuro.
Os obstáculos parecem muitos mesmo nos objetivos de tornar o catolicismo um ator de peso entre os atores que, em nível global, buscam uma saída ao capitalismo e à globalização neoliberal. De qualquer modo, nada ainda está decidido. Em fins do século XIX, quando a Igreja parecia condenada a desaparecer, Leão XIII, contra todos os prognósticos, conseguiu reinventá-la com êxito. Francisco assume desafios semelhantes. A história dirá se as mudanças introduzidas são suficientes para relançá-la frente aos grandes desafios das próximas décadas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Papa Francisco encarna uma nova utopia cristã? Artigo de Diego Mauro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU